Fotografia na berlinda 2005                                                                                

© Carlos Fadon Vicente

 

Fotografia na berlinda (1) (2) (3)


A conhecida frase "a fotografia é um meio de expressão e comunicação" pode ser transposta indicando, primeiro, a fotografia per si e, segundo, a fotografia além de si. Mais ainda, respectivamente como manifestação artística e como vinculada a uma área ou sistema de conhecimento. Em qualquer caso, ela é dependente da forma de apresentação e do contexto de difusão, filtrada pela objetividade/subjetividade do espectador e seu repertório cultural.


Tal clivagem, embora pareça conveniente, mascara o fato de uma mesma imagem possa, em tese, transitar por diferentes aplicações. Assim parece ser mais razoável ter em conta a fotografia simplesmente como uma atividade-meio e cuja pluralidade se constata claramente em sua proeminência histórica. Na mesma linha, não há pré-condição para alguém fotografar, exceto dispor de uma câmera qualquer e que, por certo, não se confunde com o conhecimento em torno da expressão visual.


A diversidade de movimentos estéticos na história da fotografia contrasta com o fracionamento negativo a que ela é submetida em certas instâncias, por exemplo, em cores versus em preto-e-branco, amadora versus profissional, jornalismo versus publicidade, celulares versus câmeras – afora o questionamento, fotografia como arte e arte como fotografia.


A representação fotográfica advém de uma construção estética e portanto ideológica, embutindo uma visão de mundo e configurando nesse sentido um documento sobre o autor. Um ato fabulador sobre e

a partir de uma particular realidade interna/externa. Essa imagem é tida – na verdade, acreditada – conforme as circunstâncias como sendo um espelho/cópia, uma interpretação/revelação, uma fabricação/invenção.


O debate sobre a natureza e o horizonte da fotografia permanece aceso, veja-se por exemplo: André Rouillé. La photographie: entre document et art contemporain. Paris: Gallimard, 2005; Laura González Flores. Fotografía y pintura: ¿dos medios diferentes?. Barcelona: Gustavo Gili, 2005.


O processo de elaboração da fotografia tem no aparato tecnológico um coautor, um "personagem industrial" algo oculto e pouco lembrado, porém sempre atuante. Na base química essa participação compreende os recursos de geração na câmera e os procedimentos de (pós)produção em laboratório, conferindo um grau de manipulação – termo raramente empregado – relativamente limitado em termos de alcance e flexibilidade. Em base eletrônica há uma mudança acentuada: a extensão dos recursos de geração, incluindo automação e pós-produção, e ampliação do espectro da pós-produção em computador e calcado na computação gráfica. O grau de manipulação se estende e se intensifica, a situação limite é a imagem de síntese – quando fotografia e pintura se igualam.


Na plataforma digital a máquina cedeu lugar ao computador – tem-se agora um aparelho imagético. Não só a imagem fotográfica é criada intra e extra câmera mas a caixa pretahardware e principalmente software – revela pouca transparência. Seu papel nem sempre é sabido, consentido ou mesmo gerenciado – no ar, há tanto o imperativo tecnológico como o desígnio do autor. Entretanto, a mudança maior reside na metamorfose do imaginário fotográfico, em parte embalada pelas artes visuais, pelas narrativas literárias e cinematográficas, sinalizando a passagem da fotografia para o universo da imagem eletrônica.


O fetiche da realidade idealizada, perfeita por assim dizer – mais além das imperfeições e dos desacertos agora devidamente maquiados, vulgo tratamento de imagem – serve no mais das vezes de anteparo à incerteza e atende à pulsão por controle. Em complemento, observe-se que o "ultrarrealismo fotográfico" é o santo graal de alguns desenvolvimentos em computação gráfica, por exemplo, simuladores de voo, videogames, efeitos especiais no cinema, entre outros. Apesar do deslocamento da gênese e da práxis da representação fotográfica, curiosamente, uma certa terminologia segue predominante: "tirar uma fotografia" e mesmo "tirar um retrato", em detrimento de ao menos "fazer uma fotografia" senão "criar uma imagem".


A somatória da marcante expansão do imaginário do autor e do espectador, mais  com a vasta oferta de recursos técnicos, põe em perspectiva a diluição do valor da fotografia como documento a partir da realidade natural. Colaboram nesta vertente, por exemplo, a amplitude das imagens ultrarrealistas online, a exemplo do Google Street View via Google Earth / Google Maps, entre outras fontes.


Existe um segmento da expressão fotográfica em que a questão do duo documento e criação adquire outras tonalidades, qual seja o ensaio e que aqui é sumariamente definido como um conjunto aberto e articulado de imagens conformado a uma estética e a uma metodologia – a noção de conjunto aberto é emprestada da matemática, por articulado entende-se a interligação entre imagens via elementos do visível e não-visível fotográfico.


Os primeiros passos do ensaio fotográfico – nomeado então como reportagem – podem ser percebidos no fotojornalismo na Alemanha dos anos 1920 – ver Gisèle Freund. Photographie et société. Paris: Seuil, 1974, e ganharam força notadamente na revista Life, lançada em 1936, a exemplo de Spanish Village (1951) por W. Eugene Smith. Essa aproximação permeou diferentes periódicos, por exemplo no Brasil em O Cruzeiro (1928-1975) e Realidade (1966-1976), e segue sendo objeto de acompanhamento e análise mundo afora.


Ao longo do tempo, o ensaio fotográfico tem servido à expressão de diferentes autores com variadas temáticas e sob distintas abordagens. Por certo, nem sempre é empregada essa nomenclatura e tampouco obedece uma mesma definição. Um apanhado importante pode ser visto na clássica revista Camera (especialmente com Allan Porter, editor 1966-1981) e nas contemporâneas Luna Córnea e European Photography, entre outras.



revista Camera, setembro 1978.


São inúmeros os autores contemporâneos que conduzem projetos conceituais e elaboram ensaios tecendo uma mise en scène sobre um substrato documentário – cenários e personagens reais ou imaginários. A título de referência seguem alguns nomes: Antonio Saggese, Claudia Andujar, Flor Garduño, Gal Oppido, Graziela Iturbide, Joan Fontcuberta, Mario Cravo Neto, Maureen Bisilliat, Miguel Rio Branco, Vilma Slomp, entre outros.


Uma visão compreensiva do panorama brasileiro encontra-se na Coleção Pirelli / MASP de Fotografia, iniciada em 1991 e interrompida em 2013, e no crescente mercado editorial, por exemplo, Claudia Andujar. Yanomani. São Paulo: Praxis, 1978;  Orlando Azevedo. Coração do Brasil: terra, homem, mito. 3 v. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002. Zé De Boni (ed.). Verde lente: fotógrafos brasileiros e a natureza. São Paulo: Empresa das Artes, 1994.


Por fim, cabe recordar a importância e influência dos programas sistemáticos de documentação fotgráfica tais como, a Mission Héliographique, França, 1851, a campanha fotográfica da Farm Security Administration, EUA, 1935-1944, e a missão fotográfica da DATAR, França, 1983-1989.