Fotografia na berlinda 2005
© Carlos Fadon Vicente
Fotografia na berlinda (1) (2) (3)
O retrato em fotografia tem um segmento naturalmente importante, a representação do si mesmo ("self"), o autorretrato. Cabe de imediato sublinhar a cristalina e ambivalente dualidade e documento/criação, a idealização e a encenação como traços marcantes, e a montagem (fotomontagem) como diretriz estética. Por certo, carrega similarmente a influência da literatura e da pintura, e tem como pano de fundo de mito de Narciso.
Seguem-se dois exemplos significativos, mediando entre a ironia e o humor, o primeiro deles vinculado às disputas quando da invenção da fotografia na França e o segundo, ambientado num salão literário do século XIX, refere-se ao desdobramento e à multiplicação dos papéis sociais.
Hippolyte Bayard. Self-portrait as a Drowned Man (1840).
fonte: Naomi Rosenblum. A world history of photography. New York: Abbeville, 1984, p. 33.
Valério Vieira. 30 Valérios (c. 1900).
fonte: Boris Kossoy. Origens e expansão da fotografia no Brasil - Século XIX. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. p. 79.
A sobreposição do autor e do sujeito no autorretrato denotam um intento e um imaginário – sub-repticiamente um projeto declarado ou não – que se propaga na elaboração da imagem fotográfica. Mescla indivisível do consciente e do inconsciente, essa determinação admite múltiplos qualificativos, por exemplo, artimanha, artifício, camuflagem, capricho, desejo, disfarce, dissimulação, embuste, fantasia, ilusão, moda, pesadelo, projeção, sátira, simulação, sonho, zombaria etc. Prática expressiva e ação reflexiva, opera a construção da identidade e veste a afirmação do corpo.
Tendo como antepassado a fotografia instantânea – conhecida pela marca Polaroid – o autorretrato fotográfico digital é uma imagem pinçada entre a realidade premeditada da autorrepresentação e o imediatismo empreendido pela imagem digital.
O estatuto do autorretrato passa na contemporaneidade por uma nítida transformação, de prova de existência à condição de existência, e da passagem do círculo íntimo para a esfera coletiva. Aponte-se dois fatores multiplicadores: a expansão da fotografia digital associada à onipresença planetária de câmeras de fotografia e vídeo, especialmente aquelas acopladas a dispositivos de computação e telecomunicação, em particular, tablets e smartphones; a exponencial difusão de imagens pelas chamadas redes sociais, sistemas telemáticos mediados por parâmetros comportamentais
e comerciais (social media).
Na atualidade acelerada – os tempos hipermodernos enunciados por Gilles Lipovetsky – celebra-se o indivíduo, seu universo pessoal e sua projeção nos coletivos. Nesse contexto o autorretrato ganha atenção e espaço, seja por articular a afirmação de uma identidade, um eu próprio, seja por abrir caminho para uma filiação no quadro da diversidade globalizada, um eu grupo.
Mais ainda, nesse âmbito tem-se a emergência do selfie, a assim denominada autorrepresentação fotográfica intermediada pela telemática e compartilhada nas redes sociais. Veja-se um exemplo da disseminação do selfie figurando no anúncio abaixo, notando-se adicionalmente o problema da inserção da imagem.
jornal O Estado de S. Paulo, 21.09.2008, p. A13, detalhe
O selfie pode ser visto como um peculiar gênero de autorretrato. Desperta questões culturais relevantes, dentre elas destacam-se:
– o deslocamento do espaço privado para o campo público;
– o incremento da autopromoção;
– a retórica da idolatria e do modismo;
– o impulso da redundância e da banalização;
– a sombra do controle social, político e econômico.
O infindável volume de selfies criados em geral sob a pressão do momento, embebido na compulsão, na festividade e na irreverência, é o menor dos problemas. A fotografia é naturalmente frágil e efêmera, e volátil enquanto imagem digital. O selfie como autorretrato se mostra um documento descartável e uma ficção sem mistério, mais além do réquiem do álbum de retratos, celebrando a memória fugaz.